(Foto: Guilherme Silveira)
Do primeiro dia em que pisei na redação do jornal Diário de Cuiabá até o último, quando decidi sair, o mais difícil sempre foi pensar em uma pauta. As matérias diárias não precisavam de muito esforço criativo, mas sempre requisitavam muito suor. Mas ao contrário de muita gente iniciando na carreira de repórter, tive a sorte de ter editores que encorajavam outro tipo de matéria: as especiais. Eles diziam que não tinha problema se fosse demorar um mês para apurar ou que eu iniciasse o texto com uma citação do livro “Madame Bovary” (Gustave Flaubert, 1856): se a matéria fosse boa, devia ser feita.
Mesmo assim, depois de alguns meses naquela rotina de jornal diário, a frustração começa a bater e a gente busca todos os meios possíveis para se distrair. Para mim, isso consistia em chegar em casa e olhar sites de humor e curiosidades, como o 9gag. E foi exatamente neste site que a ideia para a matéria “conte sua história por um real” surgiu.
Em uma foto postada no site, um homem sentado no meio fio segurava uma placa de papelão onde estava escrito “one penny for your story” (um centavo por sua história). Achei uma ideia legal e criativa e pensei que seria algo interessante de se fazer em Cuiabá. Ver o que as pessoas que transitam diariamente pelas praças carregam consigo e o que a cidade exala todos os dias.
A ideia ficou guardada em mim por um bom tempo, pois não achei que seria possível fazer uma matéria desse tipo em um jornal. E quando, na reunião de pauta, a editora de cidades, Caroline Rodrigues, me perguntou se eu tinha alguma sugestão, fiquei hesitante em dizer pela milionésima vez “não, não pensei em nada”. Então, ao invés disso, disse:
-Bom, tenho uma ideia, mas acho que não dá pra fazer aqui...
No que Carol, como a chamamos, logo me questionou sobre o que era e o porquê eu achava que não dava pra fazer. Segundo ela, era uma boa ideia que poderia ser colocada em prática sim, mesmo em um jornal diário. Anselmo, o editor chefe, também encorajou essa matéria. Para ele, o jornalismo diário deveria ser sempre criativo e inovador.
Depois de alguns dias, decidimos que eu e o fotógrafo Guilherme Silveira iríamos para as praças do centro da cidade para realizar a matéria. Guilherme, também novo na profissão, empolgou-se com a ideia e ajudou a dar a ela a forma que teve. Pegamos cerca de trinta reais na redação e fomos para a praça da República, onde, de início, ficamos sentados sem ter certeza do que fazer.
Estávamos sentados há cerca de quinze minutos quando o primeiro contador de histórias veio sentar-se ao meu lado. O nome dele era Bruno . Tinha 17 anos. Era usuário de drogas e, para sustentar o vício, já tinha assaltado pessoas três vezes. Mas com naturalidade e simpatia, estava na praça aquela tarde vendendo meias, na tentativa de mudar de vida. Quando terminou seu relato, Bruno pegou sua moeda de um real, retribuiu com um sorriso e foi sentar-se em outro lugar.
Eu fiquei impressionada por um menino tão jovem ter contado uma história já trágica de forma tão natural para dois estranhos. E pelo olhar que Guilherme me lançou, ele compartilhava da minha opinião. Com o relato de Bruno, comecei a ficar animada e pensar que esta pauta daria certo, no final das contas.
Mudamos de lugar. A maioria das pessoas simplesmente olhava a placa de papelão, trocavam olhares e sorriam, mas não paravam para conversar. Algumas atiravam uma pergunta apressada em nossa direção, mas se acanhavam quando pedíamos a história. Mas aos poucos as pessoas foram se acostumando com a nossa presença e sentavam-se ao nosso lado para contar algum caso inusitado ou situação marcante de suas vidas.
No entanto, a todo momento tínhamos que nos fazer presentes. Algumas pessoas, por mais que quisessem falar, precisavam de um empurrãozinho. Foi o caso da história que, para mim, foi a mais significativa: a do picolezeiro José Burdelake. Um de seus companheiros de ponto, um vendedor de frutas, nos disse que o senhor José tinha uma história que nos faria chorar.
Fomos atrás do senhor Burdelake, que falou de todos os jeitos que a história não daria para ser contada daquele jeito, que era muito comprida, que era muito triste, que era muito isso e muito aquilo. Ao mesmo tempo, enquanto ele dava desculpas, contava partes da história, que acabou relatando por inteira, com muito humor e simpatia. Foi uma figura muito marcante. E quando desatou a falar, não parou mais.
Depois de passar cerca de duas horas nas praças, já sabíamos o que devíamos fazer: mudar sempre de lugar, olhar as pessoas nos olhos e as vezes dar um empurrãozinho para que deixassem a timidez de lado. Por isso fiz algo que não costumo fazer nas matérias do dia a dia: gravar.
Geralmente, prefiro escrever o que as pessoas falam. Aquele dia, no entanto, era necessário andar de um lado para o outro, fazer as entrevistas em pé, segurando vários objetos ao mesmo tempo. E mais que isso: as pessoas precisavam do contado visual para se abrir com estranhos. Precisavam sentir que estava sendo ouvidas. Muitas pegavam o gravador da minha mão e deixavam ele perto da boca enquanto falavam. Outros preferiam que eu segurasse o objeto perto deles.
De todas as pessoas que entrevistamos, nem todas queiram o dinheiro. Parte dos entrevistados queriam apenas falar, compartilhar seus problemas ou buscar ajuda.
Às 18 horas, depois de cerca de quatro horas andando pelas três praças do centro, voltamos para a redação, de onde fui direto para casa, sem escrever uma linha. Passou-se três dias sem que eu trabalhasse as entrevistas, até que eu e a editora Carol sentamos para planejar como seria a matéria. E o que ficou combinado: um abre de 50 linhas, explicando o que foi feito aquele dia, mais três histórias de minha escolha, com 30 linhas cada.
A seleção das histórias que seriam publicadas foi a parte mais difícil, e também a mais divertida. Todas as histórias eram boas, mas algumas tinham um charme a mais. Escrevi a matéria de madrugada, e ria sozinha reouvindo os relatos. Queria publicar todas, mas tinha algumas preferidas. Mesmo assim, passavam da cota combinada. Até que me decidi pelas seguintes histórias: a do picolezeiro José Bauderlake, que mais me marcou, a do jardineiro Siberino Santino Calixto, tragicamente engraçada pela humildade e bom humor com que foi contada, e a do vendedor Reginaldo Bonifácio da Silva, a quem tinha prometido ajuda.
Queria que as histórias chegassem ao leitor da mesma forma que chegaram a mim: com a espontaneidade que foram contadas, o vocabulário descontraído e refletindo a personalidade sempre contagiante de seus donos. Por isso, entre aspas, transcrevi exatamente o que cada pessoa falou, corrigindo somente os erros gramaticais que ficariam difíceis de se entender no papel.
O texto em que deveria contar minha experiência aquela tarde foi revisado linha por linha com a editora. E foi reescrito duas vezes. A matéria foi publicada no final de semana seguinte a sua conclusão.
As histórias que não foram publicadas continuam guardadas nos arquivos de áudio em meu computador. Há também uma lista com o nome de todos os entrevistados em uma agenda, com várias rabiscos de quando eu estava lutando para escolher as três que seriam publicadas. Os planos para elas são muitos, mas todos incertos.
(foto: Guilherme Silveira)